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Posts Tagged ‘bicho’

Quando nasci ele já existia. Minha mãe contou que o adotou quando chegou para morar naquela casa aprazível de jardins imensos e pássaros de canto raro em gaiolas. Então, foi natural assumir a responsabilidade de cuidá-lo depois que mamãe morreu e ele ficou literalmente abandonado. Mas não foi fácil. Hermes era um pouco arisco, arredio e imprevisível. Nem sempre queria receber carinho. Na maioria das vezes, gostava apenas de ficar por perto e ter alguma companhia. Confesso que demorei para entender seu comportamento e manias estranhos. E, com o tempo, acabei por me identificar com seu jeito meio-solitário, meio-independente, meio-carente, meio-gente. Hoje posso dizer que éramos inseparáveis. Embora, como todo gato e todo homem, houve momentos em que preferíamos desfrutar sozinhos das nossas vidas.

O problema era quando Hermes voltava das suas noitadas, emitindo sons altos e com odores muitas vezes insuportáveis. Sabe-se lá por onde tinha andado e o que tinha comido na rua. Ainda bem que sua raça tinha o hábito de tomar banho e se limpar o tempo todo. Era um bicho muito inteligente e astuto porque sabia que se estivesse sujo demais eu não me aproximaria dele. E, quando por alguma razão não tinha ânimo para fazer sua higiene, evitava a cama e dormia no sofá da sala mesmo.

A exceção foi numa madrugada em que ele voltou para casa acompanhado e me acordou quando tentava, desastradamente, copular entre os lençóis. Passado o susto, cravei as unhas nos dois amantes, que saíram correndo, fazendo algazarra, para a cozinha, onde, finalmente, consumaram o ato no assoalho de madeira e me deixaram dormir sossegado. No fundo, entendia suas sacanagens. Afinal, ele era jovem e não tinha sido castrado. Acho que, pelos cálculos da sua espécie, deveria ter uns 25 ou 30 anos. Já tive essa idade e sei muito bem o que é deixar-se levar pelo poder de sedução de uma fêmea ou, no caso dele, de várias.

Só tinha uma coisa que fazia ele me tirar do sério. Era quando cismava de brincar na minha máquina de escrever Olivette. Ele sabia que era ali que eu passava todas as tardes. Mas bastava sair por um segundo que ele chegava e ficava batendo nas teclas. Acho que gostava do barulho ou se divertia com as hastes metálicas dos caracteres que subiam e desciam, pressionando a fita com tinta e imprimindo sonhos incompreensíveis na superfície branca do papel. Então, só me restava esperar pacientemente pelo fim daquela trela – que podia durar horas e horas – para depois assumir meu posto.

Às vezes, tinha a nítida impressão de que Hermes se achava o dono da casa e até de mim. A verdade é que ele me fazia muita companhia, era carinhoso e tal, mas parecia não perceber que esses momentos eram geridos e comandados por mim e não por ele.  Certa vez, tive que machucá-lo para que entendesse que não estava mais com vontade de brincar. Mas fiquei tão mal por isso que preferi adotar estratégias mais pacíficas e, segundo meus avós, infalíveis. Comecei a demarcar o território, deixando meu cheiro pelos cantos, para lembrá-lo sempre de quem mandava ali. Com a convivência, também passei a observá-lo mais atentamente e já conseguia identificar através da linguagem corporal como estava seu temperamento. Pelo tom da sua voz também era possível dizer se estava animado, triste ou agressivo. E, acho que ele também conseguia me entender só de olhar para mim. Desenvolvemos uma comunicação particular e, ao mesmo tempo, universal. Amor, sim, era o que sentíamos um pelo outro.

Nós, felinos e humanos, somente não aprendemos a lidar com a separação. Certa noite, Hermes não voltou para casa. Esperei-o ansiosamente por várias semanas, meses e nada. Até que não restaram dúvidas de que algo ruim tinha acontecido com ele. Um atropelamento, pensei. Deixei de comer, emagreci e estava a ponto de morrer também. Mas o instinto de sobrevivência falou mais alto e, numa manhã de sol, decidi me mudar, encontrar um novo lar e, quem sabe, adotar outro animalzinho. Dentro de mim, no entanto, sabia que nunca em todas as minhas sete vidas de gato teria um homem de estimação como Hermes.

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Foto: Gustavo Belarmino
Modelo: Nicolau, persa de Giovani Oliveira

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